Quietude

30/09/2014

 

Olá, pessoal! Eis aqui mais um conto escrito por mim, espero que gostem!

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El Manzano é um bairro muito distinto da cidade de Cartagena, no Sudeste da Espanha. Ali vivem pessoas frugais de costumes corriqueiros que levam suas vidas normalmente. Os moradores pouco interagem entre si porque uma boa parte deles são idosos e já não estão mais na idade de sair para dar voltas pelo quarteirão como faziam anos atrás.

As ruas são taciturnas e de pouca movimentação, raramente alguém sai para ver como está a temperatura, ou o quão belo está o dia, que nem sempre é belo, tendo em vista que o bairro El Manzano é de caráter ignóbil. Os becos são sujos e malcheirosos, as paredes das casas, quando não fragmentadas, encontram-se em total estado de dilacero – Os portes chacoalham-se ao encontro do vento e permanecem tênues perante as tormentas de Agosto.

Quietude

A pessoa mais pândega daquela monótona rua era a Senhorita Zafón, uma aposentada que, nos fins de semana, se esforçava para comunicar-se com os vizinhos. E após rejeitarem acompanhá-la em sua caminhada matinal – que acontecia somente aos sábados e durava por volta de quinze minutos –, a senhorita justapusera-se a ruar pelos becos. Nunca temia nada, mesmo sabendo que a situação havia mudado no mundo e que haviam assassinos à solta pelos becos espanhóis, mas não se importava. Fazia sempre a mesma rota e chegava em casa sã e salva.

Vivia em um apartamento enorme, mas dormia no sobral com os gatos, seus animais preferidos. Também brincava com um corvo que por hora pousava ao seu leito nas manhãs escuras e chuvosas de Janeiro à Março. Ela apelidara aquele corvo de Tadeu, porque a sua maneira de grunhir parecia pressupor aquele nome. O corvo era muito nefasto, mas isso não era muito perceptivo para a senhorita Zafón, tendo em vista que ela também era recheada de aspectos lôbregos e caliginosos. Usava sempre roupas escuras como se habituasse um enterro em cada vão momento.

Ela tinha por volta de setenta e três anos – talvez mais – seus cabelos eram parcialmente pálidos, grisalhos, com uma exótica coloração enferrujada, como se fosse ferro propriamente dito. Seu rosto era plissado, as sobrancelhas eram emendadas, seu nariz era estreito e incrivelmente adunco – aparência que a deixava semelhante a uma bruxa –, não deixarei de discordar. Seus lábios eram ressecados e, por escassez de perfume, ela cheirava a cachorro molhado.

Era loquaz quando estava sozinha, porém, durante a noite, permanecia-se incólume devido aos constantes barulhos que ela ouvia no apartamento ao lado – Inabitável – Ninguém nunca chegou a morar ali, porque coisas trágicas aconteciam. Quando o inquilino não era morto, ele perdia um dedo ou era perseguido por uma faca, de certo modo, quando não saía direto para o cemitério – saía direto para o hospício!

Eram barulhos perturbadores, mas que a senhorita já estava acostumada, coisas como barulhos de coisas batendo e caindo no chão, batuques na parede, gritos, gargarejos estranhos e arranhões estridentes. Outrora algum barulho diferente lhe chamava a atenção e a fazia ficar ainda mais perplexa.

Certa vez tentou puxar assunto com uma das vizinhas a respeito do que lhe perturbava, a mesma afirmou que também ouvia, mas que não estava a fim de se intrometer porque temia o pior. Achava que demônios viviam ali – pensamento corriqueiro de uma pessoa corriqueira –, e que se tentasse descobrir coisas a respeito, seria perturbada também. Muito embora a senhorita Zafón tivesse interesse em descobrir de onde vinham aqueles ruídos, nunca se opusera a entrar no tal apartamento para verificar.

“Mexer com demônios é querer ser atormentada por eles!” – Era a justificativa da senhora Capdevilla, uma velha pacóvia que residia nos arredores por pouco mais de cinco décadas. Se mudara para El Manzano aos vinte e cinco anos de idade e, através disso, sua idade pode ser calculada, embora nunca especificada claramente. Era casada com um velho pachorrento de pele rubicunda que permanecia sempre recôndito nas almofadas por algum motivo. Sempre que alguém entrava no apartamento da Senhora Capdevilla, ele se assustava e se cobria.

“Meu marido quis entrar naquele apartamento uma vez, e entrou, porém, quando saiu, nunca mais foi o mesmo. Seja o que for que a senhorita esteja pensando, jamais entre naquele lugar. Serafim nunca me disse o que aconteceu lá, mas pelo estado em que ele se encontra, acho melhor a senhorita tomar muito cuidado, ou melhor, deixe tudo como está!” – Quis aconselhar a Senhora Capdevilla – “Porque se a senhora entrar ou não, que diferença vai fazer? Estou certa de que não sabes como deteriorar um demônio, não é mesmo?”

“Sim, senhora! Tentarei conter a minha curiosidade quando a isto!” – Replicou a senhorita Zafón, entristecida. Foi-se de volta para o apartamento em seguida. Naquele momento, passou pela sua cabeça a hipótese de se mudar para Barcelona, para morar com os afilhados. Qualquer coisa seria melhor do que continuar naquele lugar sendo atormentada. Queria encontrar a paz sequer uma vez, poder dormir tranquilamente por apenas uma noite. Era tudo o que ela desejava, e que acreditava não poder ter.

Na noite seguinte, a senhorita perdeu-se no estranhamento.

Nada se ouviu senão a monotonia da noite. Ela queria uma noite calma, e estava tendo. Nenhum grito, nenhum barulho, nenhum arrastão nem arranhão, só o mais perfeito silêncio. Porém, ao invés da senhorita Zafón contentar-se, não foi isso o que aconteceu. Estranhou a calmaria, pois sabia que algo estava muito errado. De certa forma, ela estava certa. – Dizem que as pessoas apreciam um pouco da paz quando estão prestes a morrer, pois bem, talvez essa frase faça sentido!

A noite estava branda e álgida. O luar estava farto e dava iluminação suficiente para empalidecer, através da janela, todo o quarto da senhorita Zafón. Ela quis se levantar, mas continuou quieta, esperando conseguir ouvir qualquer coisa suspeita – mas não ouvia nada senão o bom e velho silêncio –, sentou-se sobre a cama, descalça, e ficou olhando para a parede. Teria sido melhor se a senhorita não estivesse mergulhada em uma insônia sem fim. Nunca conseguia dormir bem, portanto, não seria dessa vez que dormiria.

O seu cérebro já estava convicto de que haveria algumas conturbações, e então, começou a protagonizá-las do nada, automaticamente na sua cabeça, fazendo com que os seus batimentos se acelerassem e sua respiração se tornasse ofegante. Tudo começou a agitar, para ela. Porque o silêncio continuava. E então ela fechou os olhos, e se concentrou no silêncio. E tudo se acalmou.

Quando abriu os olhos, viu um vulto. Podia jurar que alguém estava ali á sua frente observando-a. Talvez fosse loucura, mas alguém poderia muito bem estar ali. Depois de um tempo, a senhorita passou a julgá-lo como inócuo ou inexistente, mas em sua visão ele soara tão real que assimilava-se a qualquer coisa ígnea. Um vulto fugaz que deteriorou-se em menos de um segundo desde o momento em que abriu os olhos. Durou o suficiente para que ela se amedrontasse – aquele medo insolente que não cessaria pelo resto da noite.

A senhorita não recordou-se de sua sumidade e levantou-se da cama. Queria checar o que se passava naquele apartamento, e achava que aquele seria um bom momento, já que tudo estava em pleno silêncio – dentre todas as coisas que se falam sobre a coragem, era exatamente isso o que se passava na cabeça dela, que deveria enfrentar o seu maior pesadelo. Acontece que, os pesadelos não são simples medos, eles estão no mundo da lucidez, e nesse mundo, certos medos nunca acabam.

“O medo precisa ser sentido, mas eu não quero senti-lo” – Ela pensava naquele momento enquanto dava passos silenciosos pelo assoalho pérfido que fazia a madeira chiar devido ao senso de velhice do apartamento.

O apartamento da senhorita Zafón era cheio de quadros antigos com molduras mais antigas ainda. Ela não sabia a quem pertenceu aqueles quadros, mas preferiu deixá-los expostos quando se mudou, mesmo desconhecendo a história por trás deles. Um casal e uma criança, três quadros, pessoas janotas e risonhas. Ela achou que os quadros davam um ar de residência colonial ao apartamento, todavia jamais pensou que haveria algum mistério por trás deles. Sinceramente, ela nem sequer pressupôs tal coisa – não era tão insana a esse ponto!

Continuou andando calmamente, empurrou a porta já tendo-se por temerosa. Seus dedos tremiam e calafrios se apoderavam de todo o seu corpo. Suas pernas começaram a bambear e os seus dentes começaram a bater. Algo estava muito errado. Ela quis agir com cautela, mas quando puxou a porta acabou batendo-a com muita força. Tudo o que ela ouvia eram os rangidos que vinham do sobral, ocasionados pelos gatos que ela tinha.

A angústia tomou conta, no entanto ela precisava se acalmar. Em face da inquietude, hesitou no meio do caminho e começou a se perguntar o porquê de estar querendo adentrar aquele apartamento, porquanto era apenas o seu subconsciente lhe ditando o que era certo a se fazer. Decidiu que continuaria. Decisão erronia a se tomar, e ela, de alguma maneira, tinha convicção de que não haveria uma forma daquilo acabar bem. A verdade é que nós, quando sentimos medo, nunca achamos que algo vai acabar bem, por isso sentimos medo. O medo nada mais é que um antecedente da morte, sem o medo a morte perde o seu sentido e torna-se algo aprazível quando não se tem o que temer.

O corredor era muito estreito e longo, a porta do apartamento seguinte estava à sua frente, e ela esperava cultivar coragem para adentrar. Conteve sua trenguice e respirou fundo. Ab-rogou seu desespero e continuou ali, parada. Sua pele, aos poucos se empalideceu. Suas têmporas pesavam e o seu ouvido latejava conforme se aproximava daquela porta. Sentia também um enjoo repentino, e uma vontade louca de acabar com tudo aquilo, apesar de não ter forças para continuar. Aferente àquilo, proferiu silenciosamente palavras de rogo, pedindo a Cristo que lhe desse forças para entrar. Sua coragem naquele momento estava se desfazendo, mas mesmo assim entrou.

Segurou a maçaneta e, com a pouca força que lhe restava, empurrou-a.

O apartamento continuava calmo. Mais monótono do que aparentava. Lentamente, calmamente e sutilmente, a senhorita foi entrando. Sentiu um remorso inefável por estar ali dentro e viu-se em uma situação de desespero, apesar de nada estar rodeando-a, ela se sentia encurralada. Como se pressentisse um perigo eminente.

O apartamento era baldo de limpeza. Estava todo empoeirado e tinha aspecto brumoso, apesar de não haver qualquer vestígio de bruma ou névoa no local, talvez de poeira. Havia objetos esparramados por toda parte, cacos de vidro e móveis desorganizados e revirados davam uma aparência de abandono ao local. O frio que fazia ali era fora do comum devido à umidade. O assoalho já estava se partindo, deteriorando-se pela ação da água. O local era tão inebriante a assustadoramente incrível que tudo ali ecoava, desde o primeiro tocar meticuloso de um dedo ao assoalho até o ofegar de uma respiração desesperada. Logo, se os demônios inevitáveis que tanto foram descritos ali estivessem, a senhorita Zafón já poderia considerar-se perdida. Até porque, sua destreza já não era a mesma de quando ela era mais nova e saía correndo por aí com as garotas que tinha como amiga no El Manzano, suas costas doíam bastante. Ou seja, não tinha nem como equipará-la a qualquer coisa sobrenatural.

Entretanto, ela não queria fugir-se ao raciocínio lógico para o sobrenatural. Queria esquecer que algo muito ruim estava acontecendo ali, embora fosse difícil, pois os arranhões, gritos e batuques eram pertinentes em sua cabeça como se a encorajassem de que tudo aquilo voltaria em breve. Mas ela conhecia o próprio cérebro, sua sumidade era tamanha para saber que assim como a dor existe para evitar o que nos fere, o medo existe para evitar o que desconhecemos. A senhorita sabia disso, mas preferiu arriscar.

Caminhou até o centro do apartamento, sentindo um nó se formar em sua garganta. Caminhou até a cozinha e quando virou-se para o corredor, viu a pior desgraça que poderia ver em toda a sua vida.

Seus batimentos voltaram a acelerar e ela gemeu, sentiu-se perturbada, isolada, queria correr, mas não podia. Algo a impedia. Fazia com que ela quisesse permanecer naquele lugar, porque merecia sofrer, por um motivo desconhecido. Porque quem guarda a sete chaves um segredo desconhecido, jamais deve tentar destrancar as sete chaves dos outros para explorar os seus segredos. Eis aqui minha moral. O desconhecido é desconhecido porque não deve ser explorado. Naquele momento a senhorita sentiu-se constipada e um mal estar apoderou-se de seu corpo. Cambaleou por vários momentos e titubeou em direção ao assoalho.

Seu nome fora cravado na parede, a qual, do outro lado, a senhorita dormia.

“ZAFÓN” – E era essa a origem dos arranhões. Não era um único, o seu sobrenome estava espalhado em vários cantos do apartamento. Alguns foram pintados com sangue, senão sangue, algo rubicundo. Depois de um tempo, os barulhos voltaram, pratos que não existiam começaram a cair e se quebrar. Coisas voavam instantaneamente pelo apartamento pouco iluminado, o que causava pânico naquela senhora. Pessoas riam, hora pareciam ser duas, outrora três; uma criança. E a balbúrdia continuava. As coisas despencavam perto dela.

Ela não podia acreditar no que estava vendo. Começou a soar frio e a ofegar-se. A porta bateu-se agressivamente e, infelizmente, ela viu-se presa naquele lugar. Não haveria mais saída, teria que aguentar até o fim, aquele protótipo de inferno irredutível, até o fim, se é que aquilo teria um fim. Porque, por algum motivo, certos tormentos nunca terminam. Talvez as pessoas que muito sofrem sejam perturbadas por maus pensamentos, simplesmente, ou, como hei de crer, sofrem porque precisam sofrer. Há quem note que as pessoas sofridas sabem mais sobre a vida do que as que nunca sofreram, é um fato, o sofrimento é o melhor sinal de experiência dentre todos. Não importa a idade, pode haver pessoas de várias décadas que nunca sofreram, ainda assim, essas pessoas não serão equiparadas em experiência a uma criança que só sabe o que é sofrer. Experiência de vida é sofrer, perder, reerguer e saber seguir em frente.

A senhorita Zafón gostaria de ter sabido disso a tempo. Não teve forças para se reerguer, ficou no chão, sem fé e cedeu àquilo.

Ouviu-se a porta se destrancando. Surgiu na face indomável daquela mulher uma esperança, um homem entra, passos firmes em sua direção. A porta se fecha e se tranca. O homem gargareja e grita bem alto.

O sangue escorre. Gotícula após gotícula, pouco após pouco e litro após litro.

Até que tudo se cessa. Os gritos, os barulhos, os arranhões. Tudo o que antes costumava perturbar a todos, se cessa definitivamente. E a agonia daquela senhora também teve um fim, o seu medo inenarrável, toda aquela angústia. Às vezes o passado vem à tona. Pois um segredo quando agravado, nem a morte o desintegra.