A sentença

18/09/2014

 

Olá pessoal, meu nome é Igor Cesar S. de Castro, e este é o meu primeiro conto no blog Ah! Duvido. Espero que gostem!

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Empurraram-me escada a baixo pela milésima vez e riram. Como já tinham feito anteriormente. Um sujeito alto agarrou uma alabarda e bateu-a, fortemente, na minha cabeça. Fazendo com que o meu rosto sangrasse ainda mais do que já sangrava. Todo o meu corpo doía, e aquela dor não cessava. A agonia era tanta que eu já nem mais me lembrava se em algum momento da minha vida eu havia sido, de fato, feliz. Já havia perdido o sentido de tudo e já tinha me esquecido de todos. Nem sequer sabia há quanto tempo eu estava naquele lugar. As paredes pareciam ficar cada vez maiores, e o lugar onde eu ficava era íngreme.
Socaram-me de novo e de novo. Não precisavam de motivos para fazer aquilo, pois eram pagos para fazer. A alta cúpula houvera designado-os para o serviço. Maltratar os traidores. Eu poderia lhes dizer que o lugar onde eu estava era um retrato promíscuo da realeza prescindível do fogaréu do quinto dos infernos. O lugar era quente como tal. Cheirava a enxofre e sangue. Talvez eu estivesse no inferno e não fizesse a menor ideia. Senti tanta dor nos últimos anos, que nem sequer sei se ainda estou vivo. Os únicos humanos que vejo são estes que me maltratam. Os que restam, têm medo de mim. Nada fiz demais para merecer o que me fazem.

Talvez faça alguns anos, décadas, séculos; já estou bem velho. Não me lembro do motivo pelo qual eu vim parar aqui. Ninguém me fala nada. Costumo chamar o meu passado de outra vida, porque não me lembro de nada. Nos meus pareceres, nasci nesse lugar e é aqui que eu vou morrer. Não me lembro se tive uma mãe ou um pai, nem se um dia me casei ou tive filhos. Só que, apesar de não conhecê-los, eu sinto pena. Se é que tive uma família, como será que eles se sentem por saber que eu estou aqui? Alguém se importa? Ainda falam de mim?

Aqueles mesmo homens me levantam. Empurram-me para frente e gritam comigo em um idioma que desconheço. Meus joelhos estão rígidos. Minha coluna há tempos já não é mais a mesma. E mesmo assim pressionam. Querem que eu ande ereto, pois sabem que sinto dor. Querem que eu sinta dor. Acho que isso os alegra. Dementes. Eu queria que as coisas fossem como antes, apesar de não me lembrar de como as coisas eram. Talvez fossem melhores, ou piores. Cada qual com seus problemas. Mas talvez a minha família fosse uma família boa e talvez eu tenha vivido em um bom lar. Talvez eu tenha sido feliz. Só quero que alguém me confirme isso. Porque se um dia eu fui feliz, de certo modo, mesmo agora, prestes a morrer, eu hei de ser feliz por saber que um dia a felicidade me encontrou.

 

Kii.fw

Só quero esquecer que ainda sinto dor. Queria que o meu rosto parasse de sangrar e que o meu corpo parasse de doer. Minha visão embaça de repente e eu perco a melhor parte. Caio num sono profundo. Quando acordo, encontro-me em uma sala imensa e iluminada. Meus olhos ardem em contato com a luz, e por um momento, noto que pessoas olham para mim. Cinco homens sórdidos e alguns carcereiros olham-me com desgosto. E por hora dizem que a minha hora vai chegar. Sobe o primeiro homem, naquela escada imensurável e quando ele alcança o seu destino. O ouço gritar. Todos os outros homens se apavoram. O segundo homem não quer subir, e os carcereiros o arremessam contra a escada. Finalmente conseguem arrastá-lo.

Este, gritou mais que o anterior. O silêncio toma conta do ambiente. Começo a tremer e os carcereiros riem ao notar o meu temor. Os outros homens, ainda vivos, sentenciados, compactuam comigo e agem da mesma forma.

Observo o local, minuciosamente, pela primeira vez, com a intenção de livrar-me do temor. É uma sala, como antes disse, imensa. As paredes são escuras e salpicadas de escarlate. Eu realmente esperava que aquilo fosse tinta, pois pela maneira como fora respingado, assemelhava-se a sangue. Aliás, todo o lugar tinha cheiro de sangue. Aquele aroma irreconhecível que senti durante todo o tempo em que estive ali. Queria poder sentir outro aroma antes da hora que viria. Pois vi que os dois homens sentiram o que eu estava prestes a sentir, foram castigados com o castigo que eu também receberei. E eu só queria mais uma chance.

Minhas narinas desconhecem uma flor. Nem sequer sabem o que é perfume. Os cheiros que aqui pairam são os mesmos saturados. Sangue, enxofre, cebola, terra molhada e brasa pura. Meu paladar desconhece algum gosto. Pão duro, peixe podre e água. Servem-me de alimento. Só a dor mantém-me de pé. A dor faz com que os fracos cedam, mas faz o contrário comigo. Não sinto que devo desistir, não sinto que devo deixar a dor corroer-me. Sinto que devo lutar. Aguentar. Persistir. Talvez essa dor não seja eterna, pois nada no mundo deve ser eterno. Ninguém sofre para sempre e nem é feliz para toda a vida. O sofrimento está mais presente em nossos corações que o amor puro que dizem existir. Por falar em amor, também não me lembro o que é. Lembro-me de que é uma boa sensação. Que as pessoas idolatram este sentimento, que escrevem livros a respeito, comentam, brigam, discutem e matam. Talvez esse sentimento não seja tão bom assim, se formos analisar como os outros o descrevem. Eu nunca o senti, quero dizer, não me lembro de tê-lo sentido. Mas se o senti de alguma forma, eu o descreveria completamente diferente. Pois um sentimento que traz tantos sorrisos, jamais traria alguma dor.

Um homem, daqueles três que restaram, começa a chorar. Diz que não quer morrer e corre pela sala. Tentando achar uma brecha para escapar. Mas não há nenhuma. O lugar é completamente isolado. Plano dos quatro lados e no teto. Perco-me naquela coloração sempre igual. Os carcereiros apanham-o pela cintura e começam a agredi-lo. Brutalmente. Acabo por sentir também a dor daquele homem, e as lágrimas escorrem pelo meu rosto.

Os dois corpos são jogados do alto da escada. Os dois homens mortos. E aqueles corpos se juntam ao terceiro, o homem que acabaram de matar através de pancadas. O terceiro que chorava, morto por agressão. Escuto mais e mais gritos. E os demais homens se apavoram. Os carcereiros sorriem enquanto os homens choram. E o quarto é arrastado para cima. Permaneço inerte, pois sei que o que eu fizer, contribuirá para que eu seja o próximo.

A minha cabeça rodopia e eu pareço embriagado. Sinto-a pesando. Minhas pernas ficam incapacitadas. Eu forço e tudo volta ao normal, por um instante, até que tudo volte novamente. Já não tenho mais energia. Procuro uma maneira de fugir dali, mas é impossível. Sentado no chão, analiso cada parâmetro do local. Talvez a única maneira de fugir seria pela escada, mas como eu fugiria se ao subirem as pessoas morrem? O que será que tem lá em cima? A curiosidade me percorre num instante, e eu a desato. Não quero saber. A curiosidade enfraquece o homem, pois muitas vezes, queremos saber demais a respeito do que não nos diz. Se fosse para que soubéssemos, já saberíamos, mas a curiosidade do homem lhe condena. A curiosidade és um bem, isto, não posso negar, mas é imprescindível que saibamos usá-la com inteligência.

Há um vácuo enorme na minha cabeça. Esqueci-me de quase tudo o que sabia. Tudo o que era necessário que eu soubesse e as coisas supérfluas da vida as quais sabemos. Podem assemelhar-me a uma criança que quer saber sobre tudo, pois apesar de velho, nada sei sobre a vida. Só sei o que sei que sobrevivi. Só conheço a dor e só sei o que é sofrer. Ainda me lembro do sol e do céu, suas cores são indubitáveis. Ainda lembro-me do oceano, da aurora, do crepúsculo. A velha áurea matinal que perseguia o horizonte rompendo-o em cores magníficas, triplicando o dia jovem que acabara de nascer. E ao crepúsculo, este, pôr do sol, magnífico como o aurora. De cores singelas, porém, extravagantes. Termos distintos que se distinguem por uma mera semelhança. Os raios vívidos solares que resplandecem ao se pôr. O último cantar do brilho fulgindo-se pelas montanhas. Queria ver aquilo novamente.

Sinto-me inútil por saber que sou um traidor. Não sei que tipo de traição eu cometi, mas dela me arrependo mortalmente. Se eu soubesse que acabaria desta maneira, teria vivido a minha vida intensamente e não de forma superficial como todos vivem. Poderia ter tido fé e virado imortal, ao invés de cair no inferno e morrer em brasas. Poderia ter sorrido e me esforçado para ser feliz, ao invés de fazer drama e sentir-me triste. Pois a tristeza, sim, nós controlamos por apenas estarmos felizes. Esta eu controlaria. Páreo para triste, só a felicidade. Entretanto, seria feliz para que a tristeza não me tomasse.

O quarto homem, enfim, morre. Escuto-o gritar bem alto e o silêncio se espalha em seguida. Ouço praguejos de multidão e fico inquieto. “Tua hora vai chegar” – Só espero que demore bastante, pois não quero morrer. Se for para sair deste inferno para um inferno mais infernal, prefiro ficar aqui. Prefiro sentir essa angústia do que sentir a última dor cessante que fará-me a aceitação. Morrer nunca esteve nos meus planos e isto não irá acontecer.

Os carcereiros agilizam o quinto homem. E todos olham para mim. Sou o próximo e estou certo disto. Penso em como seria aquela dor. Doeria mais que qualquer dor que já senti ou morrer não dói tanto assim? Fosse o que fosse, não queria descobrir. Apesar da curiosidade perseguir-me de tal modo.

Atento-me a rapidez com que matam. Apesar de haver intervalos de quinze a vinte minutos. Começo a soar cada vez mais e quando vejo as carcereiros vindo na minha direção, começo a tremer, fico ofegante e no meu peito, o coração dispara. Chegou a minha hora!

Escuto o quinto homem gritar. Atiram o quarto e o quinto pela escada e então os carcereiros me levam para cima. A visão que tenho é assustadora.

Pela primeira vez, depois de tanto tempo, sinto o sol aquecendo a minha pele. E tomo aquilo como uma boa sensação. Vejo pessoas, muitas pessoas juntas que gritam cada vez mais. Uma multidão. Incontáveis pessoas usando roupas fúnebres.Vejo o rei, sorridente, que manda alguns homens me puxarem. Derrubam-me de joelhos e começam a gritar para a multidão, que grita de volta: “Matem, matem!”.

Começo a chorar ao vê-los erguendo uma espada. Imploro para que me deixem em paz, mas eles parecem não me entender. Um carcereiro soca-me pela última vez, e eu sinto-me mais humilhado a cada segundo que se passa. O rei ordena que os homens me machuquem, pois ele quer se divertir. Talvez seja bom ver os outros sofrerem, mas sofrer de verdade não é nada bom. Só quem sente na pele sabe o peso que é sofrer. E a dor não passa, vai e volta. Dor após dor, curando dor, fazendo dor e tudo em mim é dor. Os meus dentes doem, a boca sangra, os olhos incham, os ossos quebram.

Levantam-me e me derrubam em seguida. A multidão grita novamente. Nunca pensei muito na forma em que morreria, pois a cada dia que passava naquele lugar, achava que aquilo era o inferno e que eu estava fadado a viver toda a minha eternidade ali. Que todo o meu sofrimento era infinito. Mas acabei aprendendo que tudo é finito, apesar de toda infinidade.

Sinto mais uma dor. Grito no começo. Quero fugir, mas não posso. E tudo acaba, já não posso me mexer. Aquela lâmina passa pela pele do meu pescoço e faz escorrer sangue pelas as minhas orelhas, a visão embaça e o chão fica avermelhado. A cabeça dói e tudo dói, surge assim mais uma dor. Dor que pouco venha a durar, esta que está prestes a cessar. Caio sobre o chão frio e ouço gritos. Os últimos. Deste que me restou, lembranças que não hei de levar. Da minha vida que acabou. Eis aqui o meu…

FIM